terça-feira, 13 de julho de 2010

AMIGO SARAMAGO DE ADÃO CRUZ

Amigo Saramago

Tu morreste, segundo me informaram, em plena lucidez e consciência, sem qualquer medo ou surpresa em relação à morte. Foi assim e não podia ser de outra maneira, porque tu tinhas da vida e da morte o conceito antropológico, filosófico e de liberdade com que vivem e morrem os homens que não são homens vulgares.
E tu não foste um homem vulgar. Do ponto de vista literário, tu fizeste o que, até aí, ninguém fez, talvez depois do Padre António Vieira. Revolucionaste a literatura, quebraste a cristalização da literatura clássica como se tivesses feito explodir um fogo de artifício ao fim da página trinta ou quarenta do teu “Levantado do chão”. Criaste uma profunda influência na maior parte dos escritores portugueses actuais. E não só portugueses.
Consta-se que nunca disseste mal ou menosprezaste outro escritor. Por isso, creio que não desprezarás a minha opinião. Passaram perante os meus olhos, nas minhas leituras, além de ti, dezenas, se não centenas de escritores, desde a minha juventude, desde aqueles dezoito anos, em que eu devorava Dostoievski, debaixo dos lençóis, à luz de um foco olho-de-boi para que minha mãe não visse. Sinto que tenho algum direito a falar da tua obra. E a tua obra foi das mais belas que li, das que mais me ensinaram e perturbaram, no construtivo sentido que a perturbação pode trazer, das mais difíceis de construir, das mais penosas a levantar do chão.
E fizeste-o com toda a humildade e sabedoria das grandes mentes que têm a noção da sua pequenez humana. Basta ver que por todos os teus livros vagabundeia um narrador que não és tu nem uma personagem inventada, um fio condutor que não é obra estéril de ficção, mas a voz de um povo, a voz do povo, a voz da humanidade. Quem fala nas entrelinhas de toda a tua obra é a humanidade. Magnífica mensagem, a da humanidade silenciada. Comoves-me, meu amigo, porque entraste profundamente no coração do meu pensamento.
Mas a tua escrita, profunda e admirável escrita, que vai desde a esperança ao descrédito na humanidade, é a tua humanidade. A escrita do pensador, a lucidez do escritor, a humanidade do ser humano, a humanidade do criador de utopias, que consegue ter a coragem de chegar ao fim da vida sorrindo das suas próprias utopias. Morres com um sorriso nos lábios, não pela paz do mundo pela qual lutaste, mas com a paz de quem tudo fez para que assim não fosse, depois de teres dito ou pensado que, no fim de contas, das tuas contas, o homem é uma merda, um vírus que apareceu na cadeia evolutiva, metido à força no gráfico de Hillis, contaminando, irremediavelmente, não só toda a humanidade como toda a ordem natural dos seres vivos. Creio que tens razão, embora mantenha ainda a esperança ou a utopia de a não teres.

Adão Cruz
In Jornal Labor
24-06-2010