O centro de investigação Harry Ransom da Universidade do Texas em Austin possui um dos raros exemplares da primeira edição de Os Lusíadas , impressa em 1572, em Lisboa. Camonianos defendem que este exemplar pertenceu ao poeta português, sendo por isso conhecido como o “de Camões”.
Ler e examinar um dos raros exemplares sobreviventes da primeira
edição de Os Lusíadas – poema épico de Luís de Camões
(1524?-1580) –, impressa em 1572, é uma cerimónia quase religiosa, como se
tivéssemos ido parar a uma cena do filme O
Nome da Rosa .
Esta experiência pode ser realizada
no Harry Ransom Center (HRC), Centro de Investigação de Humanidades no campus da Universidade do Texas em Austin (UT
Austin), onde está o exemplar que dizem ter pertencido ao próprio Camões e é um
dos mais importantes entre os 34 que existem espalhados por três continentes.
Antes mesmo de entrar no edifício do
HRC, o visitante já tem, do lado de fora, uma ideia do incrível acervo que o
edifício abriga. Nas fachadas de vidro estão impressas várias imagens –
retratos de escritores e textos dactilografados – que evocam o arquivo. Lá
dentro, na biblioteca, no segundo andar do edifício, quem quiser ver a primeira
edição de Os Lusíadas tem de criar uma conta de
investigação, na página Web do HRC, e assistir a um vídeo de dez minutos
para aprender como se devem manusear livros raros e quais os procedimentos de
segurança.
Qualquer pessoa pode ver a obra, mas estes requisitos são obrigatórios para se
ter acesso à sala de visualização. É também recomendável contactar a
instituição com 24 horas de antecedência, porque o livro está guardado num
cofre.
Depois de feita a requisição da obra,
uma das bibliotecárias aproxima-se, segurando com as duas mãos uma caixa
vermelha de capa dura. Com muito cuidado desata os laços, abre a caixa, põe-na
sobre a mesa, retira o livro e pousa-o sobre suportes revestidos de veludo. O
visitante pode então folhear o livro, tentar ler as marginálias (comentários
escritos à mão nas margens), com a ajuda de duas lupas, identificando as
diferenças ortográficas em relação aos dias de hoje. Céu era ceo,
muito era muy, e as palavras hoje terminadas em
ão acabavam em am. Não era nam.
A experiência de ver o exemplar de Os Lusíadas, considerado o mais importante dos que existem
por conter manuscritos de uma testemunha ocular da morte de Luís de Camões, é
entendida por alguns como um mapa literário para regressar ao passado. A
jornalista brasileira Heloísa Aruth Sturm, quando era estudante de mestrado na
Universidade do Texas, em 2010, analisou este exemplar durante um semestre para
a disciplina de História do Livro. Todos os alunos tinham de escolher um livro raro,
analisá-lo e escrever um artigo académico. Interessada em literatura colonial,
Heloísa soube desta cópia de Os Lusíadas através do seu orientador, Ivan
Teixeira, investigador brasileiro e na altura professor na UT Austin. A aluna
ia pelo menos uma vez por semana ao HRC para analisar Os Lusíadas. Tinha medo de danificar o livro, por isso
usava sempre luvas para o folhear. Sentia-se “num convento em pleno século
XVI”. A paranóia era tão grande, diz ela, que “às vezes, até tomava cuidado
para não ficar respirando em cima do livro”.
A edição “de Camões”
No entanto, não são muitos os que vivem esta experiência literária de Heloísa.
Richard W. Oram, curador de livros raros do Harry Ransom Center, desde 1991,
diz que este exemplar de Os Lusíadas raramente é requisitado. Porém,
a sua aquisição pela Universidade do Texas tem sido de extrema utilidade
para produção académica mundial sobre a obra de Camões.
K. David Jackson, director dos
estudos de Português, na Universidade de Yale, foi professor na Universidade do
Texas em Austin, entre 1974 e 1993. Conta ao PÚBLICO, por email, que a
universidade já tinha adquirido o livro quando ele foi contratado por esta
instituição texana. E quando deu um seminário no Harry Ransom Center usou o
livro como recurso. Na altura, mostrou-o à filóloga italiana e especialista em
literatura medieval portuguesa Luciana Stegagno Picchio (1920-2008) e “ela
ficou fascinada” com os comentários escritos à mão nas margens do livro, a
marginália. Em 2003, o investigador publicou um CD-ROM, Luís
de Camões e a Primeira Edição d’Os Lusíadas, 1572, com 29 exemplares da primeira edição,
de várias bibliotecas internacionais.