Apontas para o rosto sarcástico do sol de Inverno
e disparas. Há tantos meses que não chove – reparaste?
É o próprio céu a desistir de ti. E mesmo assim tu disparas, só sabes disparar.
Estás enganada, Europa. Envelheceste mal e perdeste a humildade.
Não é contra o sarcasmo que disparas, não é contra o Inverno,
nem sequer contra o insólito, contra o desespero.
Tu disparas contra a luz.
Podes atirar-nos tudo à cara, Europa: bombas, palavras, relatórios de contas. Podes até atirar-nos à cara um deputado, uma cimeira.
Mas os teus filhos não querem gravatas. Os teus filhos
querem paz.
Os teus filhos não querem que lhes dês a sopa. Os teus filhos querem trabalhar.
Há tantos meses que não chove – reparaste?
A terra está seca. Nem abraçados à terra conseguimos dormir.
Enquanto te escrevo, tu continuas a fazer contas, Europa.
Quem deve. Quem empresta. Quem paga.
Mas os teus filhos têm fome, têm sono. Os teus filhos têm medo do escuro.
Os teus filhos precisam que lhes cantes uma canção, que os vás
adormecer.
Eu acreditei em ti e tu roubaste-me o futuro e o dos meus irmãos.
Se estamos calados, Europa, é apenas porque, contrários ao
teu gesto,
nós não queremos disparar.
in LEAL, Filipa - Vem à quinta-feira.1ª ed. Porto: Assírio & Alvim, 2016.
Filipa Leal (*1979
Porto, Portugal) formou-se em Jornalismo em Londres e concluiu o
mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros no Porto. É jornalista
cultural e integra a equipa da Câmara Clara, na RTP2. Tem feito leituras
de poesia em diversos locais em Portugal (Centro Cultural de Belém,
Fundação Eugénio de Andrade, Biblioteca Almeida Garrett, Casa Fernando
Pessoa, Palácio de Belém, entre outros), e participado em vários
encontros internacionais de escritores, nomeadamente na Galiza, em Pisa,
Zagreb e Bristol. Alguns dos seus poemas foram já traduzidos para
espanhol, croata, turco e búlgaro. Está representada em diversas
antologias, em Portugal e no estrangeiro. Integra, desde 2004, os
Seminários de Tradução Colectiva de Poesia Viva da Fundação da Casa de
Mateus. (FONTE: Wikipedia)