quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

"OS MEUS AMIGOS" DE Camilo Castelo Branco


Amigos cento e dez e talvez mais
Eu já contei! Vaidades que eu sentia.
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia,
Às suas curvaturas vertebrais.
Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco (1825-1890)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

"PLENIPOTENCIÁRIO" de Tina Modotti*(1896-1942)

Gosto de me balançar no céu

E cair sobre a Europa.

Pular outra vez para cima como uma bola de borracha,

Esticar uma mão até ao telhado do Kremlin,

Roubar uma telha

E atirá-la ao Kaiser:

Porta-te bem;

Vou dividir a lua em três partes,

aquela maior vai ser para ti.

Não a comas depressa demais.

Tina Moddotti de Richey publicado na revista "The Dial", Los Angeles, Maio de 1923

*Tina Modotti (16 (ou 17) de agosto de 1896 - 5 de janeiro de 1942) era uma fotógrafa italiana, modelo, atriz e ativista política revolucionária.


Tina Modotti, terras e tempos : viagem por quatro décadas do século XX. 1ª ed. Lisboa : Câmara Municipal , 2001. , 88 p. : il. ; 25 cm.

Obra disponível na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

"ENTARDECER" de Miguel Torga


Longa sutura a unir

A voz do mar

E o silêncio da terra,

A estrema do areal

É um verso branco, táctil, ondulado;

Cansado de brilhar,

O sol desce e coalha

Em acres e vidradas cantarinhas;

Deitada à sobra da sua beleza,

Uma Vénus humana, semi-nua,

Purifica a impureza

A olhar as vagas onde o céu flutua.



Miguel Torga
Nazaré, 13/8/1969



in TORGA, Miguel - Diário XI. Coimbra: s.n., 1973. p. 53

Obra disponível na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira



Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia Rocha, (São Martinho de Anta, Sabrosa, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, considerado, por alguns, o poeta português mais importante do século XX.