segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O DIA DEU EM CHUVOSO

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
(1888-1935)

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Falecimento da poetisa sanjoanense Rosa Maria


Faleceu a poetisa sanjanense Rosa Maria, artista e mulher, que transportava sempre consigo mensagens de flores, árvores de amarelas mimosas, paisagens de sonho, a quietude dos ocasos terrestres polvilhada com a sua poesia.
Em sua homenagem a equipa da biblioteca recorda este seu poema:

Deixa-me repousar

Deixa-me repousar
Em ti...
Que os meus sonhos
Vivam, para pensar
Que não morri...
Deixa-me sentir
Tudo o que minh'alma sente.
Como o pão nosso de cada dia,
Não posso mais pedir.
Necessito estar presente...
Deixa-me acreditar
Que é verdade...
O tempo vai passando,
E neste meu sonhar
Acordo com felicidade!
Deixa-me repousar
Em ti...


Rosa Maria
In "A magia do sentir" p. 54 
(disponível no Fundo Local)


Rosa Maria de Oliveira Silva Lobo Ribeiro nasceu em Lisboa. Desde 1962 passou a viver em S. João da Madeira. Foi em 1986 que retomou o seu hobby preferido – a pintura – a qual conjugou com a poesia. A textura para a sua pintura inicialmente foi o guache e mais tarde optou por o acrílico e óleo.
Os temas eram o bucólico da natureza que iam ao encontro do seu sentir.
Em 1995 publicou o seu primeiro livro de poesia “Estados de alma”, em 1998 “Ecos do coração”, e em 2005 “A magia do sentir”.
Foi colaboradora no semanário “O Regional” e também no jornal da paróquia “O restaurar”.
Participou em exposições desde 1992 em vários hotéis, nomeadamente, em Oliveira de Azeméis, Espinho, Gaia, S. João da Madeira e Porto. Também em bibliotecas, Câmara Municipal e Salão dos Bombeiros.
Em Janeiro de 2012 expôs na Biblioteca Municipal pela terceira vez, tendo doado à instituição uma das suas produções artísticas "Chapéu astral" acompanhado de um poema sobre o tema.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

"GOSTO QUANDO TE CALAS" DE PABLO NERUDA

Gosto quando te calas

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou
alegre, alegre de que não seja verdade.


Pablo Neruda (1904-19719
in "20 poemas de amor e uma canção desesperada" (disponível na biblioteca municipal S. João da Madeira)