quinta-feira, 29 de julho de 2010

"ACORDOS" DE NUNO JÚDICE


Posso combinar uma coisa com o senhor Pessoa:
ele que trate das suas pessoas, que as leve ao médico,
lhes dê de comer, e as meta na cama, às três,
sobretudo, e já agora às outras, se as houver,
que eu não me meto nisso. Pessoa,
basta-me a que tenho, e que já combinou
tudo com o Pessoa – mas o próprio,
de gabardine para não apanhar com a chuva
oblíqua no fato preto, e opiário no bolso
por causa do pagode marítimo.

Posso combinar outra coisa com o senhor Camões:
Apanhe o avião para a Índia no terminal dos charters,
que são mais baratos; e veja se não fuma às escondidas,
que é proibido; e menos ainda ligue o telemóvel,
que interfere com os instrumentos de voo, mesmo
que precise muito de falar com a Natércia, ou com
a Leonor, ou com a Bárbara, ou qualquer outra das mil
e três que lhe infestam sonetos e canções. O
que eu quero dele é que me traga de Hong-Kong (por onde
tem de passar a caminho de Macau) um Rolex
de imitação – no free-shop é mais barato.

E contigo, meu caro Pessanha,
quero combinar outra coisa: não me peças nada
Para o Wenceslau. Deixa-o estar no Japão, que
está lá muito bem, e o caminho de volta
para a pátria não se recomenda a ninguém. E tu,
ópio à parte, ensina a nossa querida língua a uns
quantos chineses, mesmo que eles troquem os erres
pelos eles. No teu nome, Camilo, é que não
há troca possível. E se fores à gruta do Camões, leva
o piquenique: talvez não queijadas de Sintra
nem pastéis de nata, mas um frango de aviário
e batata frita (esquece o arroz, que é melhor
ao jantar, no chinês do costume).

terça-feira, 27 de julho de 2010

ADÃO CRUZ - "UM GESTO DE SILÊNCIO"


Médico, pintor e poeta, lançou a sua sétima publicação com poemas e pinturas sob o tema silêncio.


Segundo o autor "a grande força da nossa vida reside no silêncio, a primeira voz que um homem ouve quando está dentro de si" e "só o silêncio permite desvendar as verdades dentro de nós, tendo muitas vezes vontade de as gritar".



A poesia não é mais que um dilema


Entre o silêncio e a palavra.


Por isso nunca sei se é grito ou é silêncio


O que há na essência do poema.


O silêncio não é palavra


Se a palavra é de silêncio.


O silêncio é uma pausa


nas palavras dos poemas


que se gritam em silêncio


por entre as horas da vida.


O silêncio não é silêncio


por entre as horas da vida.


O silêncio não é silêncio


Se há silêncio na palavra


Quando a palavra é melodia.

terça-feira, 20 de julho de 2010

"Era uma vez em Outubro" de Eva Cruz








Um aviãozinho de papel direito ao quadro preto
foi cair certeiro no bico do ponteiro.

Pega a professora no aviãozinho de papel, volta-se
e remete-o com a mesma pontaria, sem fúria nem
rancor, com a mesma alegria, ao menino brincalhão
que logo perdeu a ilusão de brincar aos aviões.

Foi tão fácil entender, ele e a professora, que com a
mesma pontaria e a mesma alegria, aquela guerra
nem era quente nem era fria.

p.16

segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Era uma vez em Outubro" de Eva Cruz

O mais recente livro da professora Eva Cruz foi apresentado por ex-alunos e uma colega. A professora da Escola Oliveira Júnior Cristina Marques, o advogado Miguel Amorim, o professor Pedro Nuno Pinto de Oliveira, a presidente da Universidade Sénior Susana Silva e a professora Clara Reis, que sempre acompanhou Eva Cruz na execução de projectos escolares, apresentaram “Era uma vez em Outubro”, na Escola João da Silva Correia.

O livro é dedicado aos alunos e à escola e faz um relato abreviado, em texto poético, da vida profissional de Eva Cruz, desde que entrou para a escola, aos seis anos, até que se aposentou do Ensino, em 2001. A professora ensinou Inglês e Alemão na Escola João da Silva Correia.


“Era uma vez em Outubro” sucede a “Era uma vez, Future Kids”, de 2004, e “Aurora Adormecida”, de 2006.
É o livro deles, para eles e para toda a escola”.

Em “Era uma vez em Outubro” Eva Cruz começa por relatar a primeira experiência na escola: “sexos diferentes, sexos separados./ Também a perversão se ensina, a modos que de moral. (...) O crucifixo entre os retratos de Salazar e Carmona./ (...) Quem seria tal gente? Que importava tal gente?/ (...) Aprender!/ Que há ricos e pobres./ O senhor ou a senhora professora sempre / mimavam os primeiros com um beijinho de/ Bom-Dia”. “Uma escola muito diferente da de hoje”.

A professora tece considerações sobre a liberdade de pensamento – ou a falta dele -, a distância entre professores e alunos, a chamada pelo número em vez de pelo nome e os livros proibidos.

Lembra com mais encanto a passagem por Coimbra e o desabrochar que lhe provocou – “quando sai de lá, pensava que não havia terra mais linda do que aquela, nem era possível viver em mais lado nenhum”. Mas logo volta a encontrar-se com o passado cinzento assim que inicia carreira numa escola. Com este novo passo veio o desemprego, a falta de vagas, o não receber nas férias, a distinção entre professoras eventuais e efectivas, mas também as alunas “brilhantes e amigas”.

Eva Cruz é conhecida no meio escolar não só pelo rigor e pelas competências científicas mas também pela relação que construía com os alunos. A alguns deles, já falecidos, dedica algumas passagens deste livro. É o caso do guitarrista Gustavo Brandão “Vi-te cantar a vida sonhando com a vida inteira” e de Hélder Neves (“Good boys go to Heaven”), para citar os mais conhecidos.

Orgulha-se de nunca ter sido vítima de má educação e de nunca ter marcado uma falta disciplinar. “Tive comportamentos mais indisciplinados mas reagia sempre de uma forma mais ou menos espontânea – sempre fui espontânea – e com muita convicção”, justifica-se. Sublinha também que nunca deu uma aula sentada – “estava sempre de pé e no meio deles, ou tocando ou chamando a atenção”. Ou seja, uma professora bem diferente das que teve, como reconhece, e que encarna o objetivo delineado no liceu: “essa forma de ensinar tem de fluir por outros caminhos./ Mais coloridos. /Mais risonhos.”, escreve no livro.

A autora reflete ainda sobre a passagem do 25 de Abril nas escolas e as implicações, nem todas positivas, que a revolução trouxe na fase inicial. “Alguns exageros/ algumas injustiças./ (...) A guerra das forças políticas a servirem-se da escola”,.

No relato não são também esquecidos antigos colegas como a Clara, a Isilda, a Carmina, a Nelly e o Borges, a quem dedica algumas passagens.

Eva Cruz considera que “teria cabimento” apresentar este livro quando se aposentou, em 2001. “Só que tive imensa dificuldade”, justifica. “Comecei precisamente por fazer uma crónica mas depois escolhi este jogo entre o “ensinar” e o “aprender” (os versos são sempre intercalados por estas duas palavras), que já me satisfazia”.

A professora, que até se considera uma “mulher das Ciências” e quem o pai gostaria que fosse advogada, reformou-se ao fim de 36 anos de serviço porque “tudo tem o seu tempo”, mesmo que custe. “Até estava mentalizada para a saída. Mas quando recebi pelo correio a confirmação da aposentação tive um ataque de choro que foi uma coisa incrível”, confessa. Olhando para trás, acha que fez bem, porque queria sair com as faculdades plenas. “Gostei daquilo que fiz e se voltasse atrás voltava a ser professora”, responde, sem hesitar.

“Era uma vez em Outubro” sucede a “Era uma vez, Future Kids”, lançado em 2004, e “Aurora Adormecida”, publicado em 2006. Pretende ser uma continuação do primeiro, na medida em que dá seguimento ao relato deste, mais concentrado na infância de Eva Cruz. Ambos são baseados em vivências pessoais e apresentam algumas semelhanças nos motivos escolhidos para a capa, desenhada pelo sobrinho Manel Cruz, assim como as ilustrações do interior.

terça-feira, 13 de julho de 2010

SEBASTIÃO DA GAMA E O ESPÍRITO DA POESIA À MESA

O Poeta beija tudo, graças a Deus… E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade… E diz assim: “É preciso saber olhar…” E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos… E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás… E perde tempo (ganha tempo…) a namorar uma ovelha… E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso… E acha que tudo é importante… E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim… E reparou que os homens estavam tristes… E escreveu uns versos que começam desta maneira “O segredo é amar…”.
Por tudo isto é que eu fiz a Semana da Poesia. Por tudo isto e porque de pequenino é que se torce o pepino. Por falta dela nas antologias escolares, ou pela só presença de Correias de Oliveira, Azevedos, Castelo Branco e mais da mesma firma, é que os rapazes chegam a homens com uma má vontade à Poesia ou uma ignorância dela que confrangem um cristão. É preciso, subtilmente, deitar-lhes no sangue este veneno – não tanto para que gostem de versos ou saibam versos de cor, como para que olhem o mundo através da janela da Poesia, para que beijem tudo, graças a Deus, para que saibam olhar, para que reparem nas flores e nas ovelhas. Isto é que se quer que eles façam, sem respeito humano, pela vida fora. Digo “sem respeito humano”, porque é fora de dúvida que a maior parte de nós, Portugueses, temos cá dentro um impulso que nos levaria a fazer tudo ou quase tudo que fazem os Poetas, se não fosse um receio de parecer menos viril. A gente tem vergonha de beijar tudo, de amar as flores, de se enternecer com os animais, de dar um passeio. Se beija uma árvore, é parvo; se traz uma flor na mão, é maricas; se se enternece, é fraco; se acaricia uma menina, põe nessa carícia o sexo; se vai a qualquer parte passear e ver o mundo, faz constar que foi em viagem de estudo ou viagem de negócios. Temos vergonha de ser sinceros, de que nos creiam parvos, ou maricas, ou fracos, ou lúbricos, ou estroinas. E então perdemos o melhor da nossa vida a ludibriar os outros e a insultar as nossas intenções mais belas e generosas. Ó Portugueses, é tempo de torcer o pescoço ao respeito humano. Olhai que nós somos bons e talvez seja verdade que somos Poetas – e isso não deve ser desprezado, mas antes manifestado. Começai a ser sinceros, deixai de ser irónicos, e vereis como tudo corre melhor e a vida tem outro sabor!

In "Diário" (09 Março, 1949)

GAMA, Sebastião da - Meu caminho é por mim fora[CD]. [Setúbal] : Associação Cultural Sebastião da Gama , 2010.
(Disponível na Biblioteca Municipal de S. João da Madeira)

POEMA A SARAMAGO DE EVA CRUZ

Levantado do chão
como só os Homens de sonho se erguem
não há vida que te deite nem morte que te leve.
A lucidez esparsa em luz nas páginas dos teus livros
de mão dada com a terna dureza do teu carácter
há-de curar os olhos da cegueira
e abrir as palavras do teu Evangelho
às correntes límpidas dos rios
que regam a terra de sabedoria.

Eva Cruz

In Jornal Labor
de 24-06-2010

AMIGO SARAMAGO DE ADÃO CRUZ

Amigo Saramago

Tu morreste, segundo me informaram, em plena lucidez e consciência, sem qualquer medo ou surpresa em relação à morte. Foi assim e não podia ser de outra maneira, porque tu tinhas da vida e da morte o conceito antropológico, filosófico e de liberdade com que vivem e morrem os homens que não são homens vulgares.
E tu não foste um homem vulgar. Do ponto de vista literário, tu fizeste o que, até aí, ninguém fez, talvez depois do Padre António Vieira. Revolucionaste a literatura, quebraste a cristalização da literatura clássica como se tivesses feito explodir um fogo de artifício ao fim da página trinta ou quarenta do teu “Levantado do chão”. Criaste uma profunda influência na maior parte dos escritores portugueses actuais. E não só portugueses.
Consta-se que nunca disseste mal ou menosprezaste outro escritor. Por isso, creio que não desprezarás a minha opinião. Passaram perante os meus olhos, nas minhas leituras, além de ti, dezenas, se não centenas de escritores, desde a minha juventude, desde aqueles dezoito anos, em que eu devorava Dostoievski, debaixo dos lençóis, à luz de um foco olho-de-boi para que minha mãe não visse. Sinto que tenho algum direito a falar da tua obra. E a tua obra foi das mais belas que li, das que mais me ensinaram e perturbaram, no construtivo sentido que a perturbação pode trazer, das mais difíceis de construir, das mais penosas a levantar do chão.
E fizeste-o com toda a humildade e sabedoria das grandes mentes que têm a noção da sua pequenez humana. Basta ver que por todos os teus livros vagabundeia um narrador que não és tu nem uma personagem inventada, um fio condutor que não é obra estéril de ficção, mas a voz de um povo, a voz do povo, a voz da humanidade. Quem fala nas entrelinhas de toda a tua obra é a humanidade. Magnífica mensagem, a da humanidade silenciada. Comoves-me, meu amigo, porque entraste profundamente no coração do meu pensamento.
Mas a tua escrita, profunda e admirável escrita, que vai desde a esperança ao descrédito na humanidade, é a tua humanidade. A escrita do pensador, a lucidez do escritor, a humanidade do ser humano, a humanidade do criador de utopias, que consegue ter a coragem de chegar ao fim da vida sorrindo das suas próprias utopias. Morres com um sorriso nos lábios, não pela paz do mundo pela qual lutaste, mas com a paz de quem tudo fez para que assim não fosse, depois de teres dito ou pensado que, no fim de contas, das tuas contas, o homem é uma merda, um vírus que apareceu na cadeia evolutiva, metido à força no gráfico de Hillis, contaminando, irremediavelmente, não só toda a humanidade como toda a ordem natural dos seres vivos. Creio que tens razão, embora mantenha ainda a esperança ou a utopia de a não teres.

Adão Cruz
In Jornal Labor
24-06-2010